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Ultramontanismo

Ultramontanismo, do latim ultramontanus[1], que significa "além das montanhas", especificamente, para além dos Alpes[2] de quem está em França ou na Alemanha, refere-se à doutrina política católica que busca em Roma a sua principal referência. Este movimento surgiu precisamente do lado francês na primeira metade do século XIX. Reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplina e .

Destacaram-se como líderes deste pensamento Joseph de Maistre, Louis Veuillot, Lamennais, Emmanuel d'Alzon, dentre outros.

Este movimento católico pretendia contrariar o fenómeno galicanista de que “na França, como em outras partes do mundo católico, a Igreja estava se tornando inexoravelmente um departamento do Estado.” (Eamon Duffy) ou o Josefinismo na Áustria e o Febronianismo na Alemanha, ou o Conciliarismo que subordinava a autoridade do papado ao de um conselho de bispos[2].

No entanto, foi na Alemanha que o movimento se tornou político e, eventualmente, tocou fora do Kulturkampf, entre o papado e o governo alemão liderado pela chanceler Otto von Bismarck[3].

No fim representou, na História da Igreja Católica, a maior de todas as reacções contra todas as transformações que o mundo ocidental vivenciava desde a Reforma e do Renascimento, passando pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa, para a consolidação dos fundamentos do liberalismo e do laicismo do século XIX[4].

Identificação do Movimento

Para um melhor entendimento da reforma ultramontana no Brasil aborda-se primeiramente uma visão geral na situação europeia, visto que essa forjou as condições necessárias para que os bispos reformadores brasileiros a introduzissem no país, já que “somos como o rebanho, que não vai para onde deve ir, senão para onde o levam: e assim entramos nas escolas mais com a semelhança que com o raciocínio.”

Operação de cunho francamente bélico-espiritual e hierarquicamente verticalizada, onde o concurso do povo não se fez notar senão como elemento coadjuvante a quem cumpria obedecer, o ultramontanismo representou, em essência, a reação de uma Igreja que não mais encontrava em meados do século XIX uma saída para a torrente de acontecimentos políticos, sociais e econômicos que questionavam sua hegemonia desde a Revolução Francesa.

O espiritual, portanto, entraria em inevitável embate com o homem que desejava viver só de pão, fazendo lembrar Júlio Dantas:

“Cardeal de Montmorency, interrompendo: Eminência, a Humanidade avança. Não é justo cerrar-se ao pensamento humano, como uma porta de oiro, o Velho Vaticano! Dir-lhe-á... Que poderá dizer Vossa Eminência?

Cardeal Rufo, veemente: França é a Enciclopédia!

Cardeal de Montmorency: E Roma a intransigência!”

Fábio José Garcia dos Reis muito expressivamente percebe que “as discussões sobre a romanização devem, portanto, ter como ponto de referência o movimento de reforma religiosa do século XVI. Os estudos sobre a romanização no Brasil pouco levam em consideração estes aspectos, que são relevantes para o entendimento do movimento reformista organizado sob a liderança dos bispos.”

A exposição detalhada do espírito ultramontano se faz portanto presente considerando-se que a tentativa de analisar o comportamento dos padres da Congregação do Santíssimo Redentor em Aparecida e sua convivência com a religiosidade popular dos habitantes desta cidade passa, necessariamente, pelo entendimento desta autocompreensão da Igreja. Senão vejamos:

A Contrarreforma na Europa

Desde o século XVI a Igreja europeia encontrava-se abalada, e os papas realizam uma verdadeira proeza, mediante uma lenta e gradual centralização nos processos decisórios, para real e efetivamente assumirem a direção da religião católica.

As diatribes luteranas em relação ao problema das indulgências geraram, ao longo dos tempos, um interligação estreita entre protestantismo e nacionalismo. Os jansenistas, nos séculos XVII e XVIII, pugnavam contra os objetivos centralizadores do Concílio de Trento (1545 – 1563), enquanto que o galicismo de Bossuet, em meados do XVIII, influenciado pelo liberalismo, afastava-se das orientações papais. O Concílio Ecumênico de Trento marca uma das principais etapas da Contrarreforma católica, respondendo a um desejo de reforma da Igreja, pois “não era outra coisa que se reivindicava em todo o mundo cristão e cada vez com maior urgência.”

Absorvidos pelo mecenato artístico ou pela defesa de seus interesses de príncipes temporais e preocupados em evitar uma ressurreição da doutrina conciliar, os papas da Renascença não haviam sabido responder a esse apelo, facilitando assim os progressos da reforma protestante.

Coube a Paulo III (13 de outubro de 1534 a 10 de novembro de 1549) o mérito de ter convocado o Concílio, que, no decurso de suas três reuniões (1545 a 1547, 1551 a 1552 e 1562 a 1563) fez obra imensa, posto que suas afirmações doutrinárias ofereceram à reforma católica uma bússola precisa a ser seguida, atravessando a existência de mais quatro papas, a saber: Júlio III (8 de fevereiro de 1550 a 23 de março de 1555), Marcelo II (9 de abril de 1555 a 1 de maio de 1555), Paulo IV (23 de maio de 1555 a 18 de agosto de 1559) e Pio IV (25 de dezembro de 1559 – 9 de dezembro de 1565).

No plano disciplinar, o Concílio fixou em 16 anos a idade de recepção no sacerdócio e em 30 anos a idade mínima exigida para ser bispo, a acumulação de benefícios foi proibida e impôs-se aos beneficiados a residência no local de sua função.

Para dar aos futuros padres melhor educação intelectual e sacerdotal, decidiu-se a criação de um seminário por diocese. A doutrina católica foi definida com intransigência relativamente às inovações protestantes: os fiéis conquistam a salvação pela fé, mas também por uma prática regular e cotidiana; a fé deve alimentar-se não só nas fontes bíblicas, mas também nos ensinamentos dos padres da Igreja, nos cânones conciliares e nas bulas papais.

A Igreja reafirma-se como indispensável para a salvação, sendo uma sociedade hierarquizada sob a autoridade espiritual do papa. Há sete sacramentos e o culto continuava centrado em torno da missa, cujo ponto culminante é o sacrifício eucarístico, reafirmado como transformação real do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo (doutrina da transubstanciação). Mantinha-se, ademais, o culto da Virgem, o dos santos, a existência do purgatório e o valor das indulgências.

O Concílio de Trento, mesmo atrasado em uma geração, marcará a retomada dos rumos da Igreja após o rude golpe da Reforma.

Adotando novos sistemas de treinamento para o clero, como por exemplo o colégio jesuíta Germanicum, destinado a preparar sacerdotes sobretudo para trabalharem a favor do catolicismo na Alemanha – providenciando mais ensino e pregação e atacando a superstição – suas reformas, ainda que não tivessem obtido uma pronta resposta, lograram conseguir a reversão do avanço do protestantismo.

É a tentativa de implantação das normas tridentinas que vai orientar o longo processo de romanização do catolicismo no mundo e no Brasil no decorrer do século XIX.

Daí, em nosso entender, torna-se essencial para um entendimento mais abrangente daquilo que se chama romanização ou reforma ultramontana serem abordados inicialmente alguns pontos do Concílio de Trento. São justamente esses pontos que formarão a linha do talvegue de toda a orientação teológica da Igreja.

A unidade de comunhão a ser seguida é ditada pelo Concílio, tornando-se bem clara a advertência: “Para que nossa fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus (Heb 11,6), purificada dos erros, permaneça em sua pureza íntegra e ilibada; e para que o povo cristão não se deixe agitar por qualquer sopro de doutrina (Ef 4, 14)[...]” (o grifo é nosso)

A transubstanciação, fonte de tantas querelas, é fortemente ratificada, buscando-se a unidade de fé: “Uma vez, porém, que Cristo Nosso Redentor disse que aquilo que oferecia sob a espécie de pão era verdadeiramente seu corpo (Mt 26,26; Mc 14,22 ss; Lc 22,19 ss; 1 Cor 11,24 ss), sempre houve na Igreja de Deus esta mesma persuasão, que agora este santo Concílio passa a declarar: Pela consagração do pão e do vinho se efetua a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo Nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue. Esta conversão foi com muito acerto e propriedade chamada pela Igreja Católica de transubstanciação.”

A definição do conceito de contrição não deixa dúvidas: “A contrição, que tem o primeiro lugar entre os mencionados atos do penitente, é uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com propósito de não tornar a pecar.”

O pecado também poderia ser perdoado por atrição, considerando-se que nem todos são habitados pelo Espírito Santo, mas tão somente movidos por ele: “[...]Quanto àquela contrição imperfeita[...], chamada atrição, porque nasce ordinariamente da consideração da torpeza do pecado ou do temor do inferno e dos castigos, se com a esperança do perdão excluir a vontade de pecar[...]”

Finalmente, a busca da unidade de governo da Igreja, com a clara ameaça de excomunhão aos dissidentes: “E se alguém afirmar que todos os cristãos são, indistintamente, sacerdotes do Novo estamento [...] parece não fazer outra coisa senão confundir a hierarquia eclesiástica [...] como se, contra a doutrina de São Paulo, todos fossem apóstolos, todos profetas, todos evangelistas, todos pastores e todos doutores[...]Portanto[...]os Bispos, que são os sucessores dos Apóstolos, pertencem à ordem jerárquica[...]estabelecidos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus (At 20, 28)[...]Ensina ademais[...]na ordenação dos Bispos e sacerdotes[...]não se requer o consentimento do povo nem de qualquer poder ou magistrado secular[...]” Concílio Ecumênico de Trento. Sessão XXIII (15 de julho de 1563). parágrafo 960. Coleção Documentos Pontifícios. N.º 95. Petrópolis: Vozes. 1959. pp. 66–67.

“Se alguém disser que na Igreja Católica não há hierarquia eclesiástica estabelecida por ordem de Deus, que se compõe de Bispos, presbíteros e ministros – seja excomungado.”

A reacção da Santa Sé e o Ultramontanismo

Após atravessar momentos históricos cruciais, como na Revolução Francesa que “perseguira a Igreja, matara-lhe os sacerdotes, roubara-lhe a propriedade e depusera e sequestrara um Papa,” a abdicação de Napoleão em 12 de abril de 1814 pôs fim ao sofrimento de Pio VII que a 7 de agosto do mesmo ano restaurou a Companhia de Jesus, dissolvida que fora em 1773 por Clemente XIV devido às pressões da Áustria, França, Espanha e Portugal.

A reconstrução da Europa pelo Congresso de Viena restaurou ao papado boa parte das terras perdidas. No entanto, o cataclismo de 1789 assentara no Velho Continente o sentimento anticlerical, empurrando a Igreja para uma atitude reacionária.

Era chegada a hora de negociar a vivificação da Igreja na Europa, e o XIX foi o século das concordatas: Com a Baviera e Sardenha em 1817, Prússia e Províncias do Alto Reno em 1821, Hanôver em 1821 e assim sucessivamente, num total de mais de duas dúzias de acordos. Contudo, a nomeação dos bispos por governantes seculares era a nota fundamental das concordatas, e em 1829 levanta-se 555 de um total de 646 indicados pelo Estado, dentre os quais nove no Brasil.

Em 1819, o conde Joseph de Maistre (1754-1840), então embaixador da Sardenha em São Petersburgo, publicou uma obra denominada Do Papado, fruto de uma reflexão sobre os horrores advindos da Revolução Francesa para o futuro da humanidade. Maistre argumenta em sua obra sobre a necessidade absoluta de um papado forte como referência ao poder monárquico.

Afirmando terem sido as monarquias criadas pelo papado, cria ser este a fonte de toda a autoridade, abalada em primeiro momento com a Reforma, e agora com a Revolução. Uma vez abertos os canais de questionamento da autoridade o problema não teria mais fim, daí a necessidade de um poder inconteste que estabilizasse a sociedade humana: o Sumo Pontífice.

Encontrando no catolicismo a solução para a sua teoria absolutista, exaltava o papado como base fundamental de sua visão conservadora, deplorando o galicanismo e o josefinismo pois entendia que qualquer tentativa de diminuição do poder papal era, também, uma diminuição da autoridade dos reis.

A questão no entanto é que a teoria de Maistre – de cunho fundamentalmente político – recebeu fantástica aceitação nos meios religiosos, e no decorrer do século cada vez mais centravam-se as atenções no papado como núcleo do catolicismo. Aqueles que, não obstante os descaminhos da política, mantinham-se fiéis a Roma, localizada, em relação à Europa, além dos Alpes, receberam o nome de ultramontanos, pois “professavam fidelidade inquestionável ao pontificado romano, aceitando simultaneamente o projeto de dar às expressões de fé católica características ‘universais’, embora na realidade fossem todas originadas da própria tradição romana.”

Dessa questão histórica, o ultramontanismo passou a significar uma total subordinação às ordens de Roma para qualquer católico, desconsiderando-se as idiossincrasias políticas e culturais dos países.

Morto a 1º de junho de 1846 no auge de sua impopularidade, Gregório XVI manteve-se aferrado à ideia de não reformar o Estado pontifício em bases modernizantes. Se por isso era criticado por setores mais esclarecidos, na Itália o descontentamento era ainda maior, posto que mantinha uma atitude negativa em relação aos patriotas que desejavam ver a península livre da ingerência austríaca.

Os problemas políticos de então dividiam o conclave. Um grupo de cardeais defendia a eleição de Lambruschini, acreditando com isso que a Áustria manteria seu apoio em face das crescentes ondas de agitação revolucionárias. Outros, propensos aos novos tempos e desejosos de um papa mais independente, preferiam o cardeal Mastai, “o qual, como bispo de Spoleto e de Imola, soubera fazer-se aceitar nos meios liberais, muito ativos nessas regiões.” Nessa época, o centro da península era ocupado pelos Estados da Igreja, que se estendiam desde o Mar Tirreno até o Adriático, sendo o papa reconhecido como rei.

Giovanni Maria Mastai Ferretti, eleito aos 55 anos sob o nome de Pio IX, iria ocupar o trono de Pedro durante quase 32 anos (16 de junho de 1846 a 7 de fevereiro de 1878) e aqueles que dele esperavam uma atitude liberal, decerto decepcionaram-se rapidamente.

Logo após ter sido eleito Pio IX realmente tomou uma série de medidas liberalizantes, dentre elas a amnistia dos revolucionários nos Estados papais, e em 1847 criou uma assembleia consultiva com representantes leigos.

Dando-se que uma encíclica, mesmo elaborada pelo próprio papa, é também fruto do pensamento dos religiosos que o assessoram e o cercam, nota-se logo na primeira carta um espírito conservador e avesso aos paradigmas dos novos tempos.

Apresentada em 9 de novembro de 1846, a encíclica Qui pluribus (Sobre os Erros Contemporâneos e o Modo de os Combater) mostra que Gregório XVI deixara seguidores no Vaticano quando assesta seus ataques sobre aqueles que “para mais facilmente se rirem dos povos, enganar os incautos e arrastá-los juntamente ao erro, pensando possuir somente eles o segredo da prosperidade, arrogam-se o título de filósofos, como se a filosofia, que se compreende toda na investigação da verdade natural, devesse repelir tudo aquilo que o supremo e clementíssimo autor da natureza – Deus – se dignou manifestar aos homens por singular benefício e misericórdia, a fim de que consigam a verdadeira felicidade.” Este protesto à independência do racionalismo é reforçado pela questão do deísmo em paridade aos aspectos da revelação:

“E não é com engano e ousadia menores, Veneráveis Irmãos, que esses inimigos da revelação divina, exaltando o progresso humano, quiseram contrapô-lo temerária e sacrilegamente à religião católica, como se a religião não fosse obra de Deus, mas sim dos homens, ou então fosse algum invento filosófico que se pode aperfeiçoar por vias humanas...”

A questão do celibato clerical, motivo de décadas de debates no Brasil, também foi objeto de condenação por parte do novo papa: “Tal é a vil conspiração tramada contra o celibato clerical que, oh dor! Vem sendo apoiada por algumas pessoas eclesiásticas, as quais, esquecidas lastimosamente de sua dignidade, deixam-se seduzir pelos prazeres da sensualidade...”

Mesmo criticando o espírito do tempo, as velhas relações entre a Igreja e os Estados não faltaram, e Pio IX pede a proteção do catolicismo aos príncipes: “Alimentamos também a esperança de que nossos amadíssimos filhos em Cristo, os Príncipes, lembrados em sua piedade e religião[...], favorecerão com seu apoio e autoridade nossos votos comuns e defenderão a liberdade e incolumidade da mesma Igreja...”

Em 1848 viria a desilusão, pois os italianos tinham na conta de uma verdadeira cruzada a expulsão da Áustria da península, e exortavam Pio IX a liderá-la. A 29 de abril o papa declarava não poder participar de uma guerra contra uma nação católica, bem como condenou a ideia de uma Itália unificada, incentivando os italianos a permanecerem fiéis a seus príncipes.

Em suma, um retorno à política de Gregório XVI, num momento em que toda a Europa se convulsionava e a Igreja era posta à prova em relação a um mundo que buscava obstinadamente as liberdades civis e religiosas, tendo como farol a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A admiração popular transformou-se em ódio, Roma tornara-se ingovernável e em novembro de 1848 o primeiro-ministro leigo Pellegrino Rossi era assassinado. Pio IX refugia-se em Gaeta, território napolitano, enquanto que em Roma a revolução estourava, colocando-se Mazzini e Garibaldi à frente de um regime republicano anticlerical, onde as igrejas foram saqueadas e os bens eclesiásticos passaram a ser declarados como propriedade nacional.

Auxiliado por tropas francesas, Pio IX retornou em 12 de abril de 1850, plenamente convencido pelo resto de sua vida que suas concessões à democracia foram a causa da revolução. Era o fim do liberalismo, e durante os vinte anos seguintes sua condição de governante dos Estados papais dependeria da presença de tropas francesas e austríacas. “E o mundo cristão teve de assistir ao espetáculo do Pai de todos os fiéis rodeado de baionetas e governando com inépcia 3 milhões de súditos que, em sua maioria, queriam ver-se livres dele.”

Não podendo mais contar com Pio IX, os revolucionários voltam-se para o rei Vítor Emanuel II, partidário da causa da unidade italiana. Para lograr tal intento foi auxiliado por seu ministro Cavour, que introduziu uma série de medidas visando amortecer o poderio da Igreja, suprimindo diversos conventos e mosteiros no território piemontês em 1854.

Essa perda de prestígio temporal, contudo, refletia em um ganho de prestígio espiritual. A luta entre o espírito anticristão do Iluminismo e da Revolução, em contraponto ao catolicismo, fazia da postura de Pio IX “o último bastião heroico da civilização cristã contra as forças do ateísmo e da rebelião contra Deus.”

Partidário da crença onde existia uma firme relação entre os princípios defendidos pela Revolução Francesa e a derrocada dos valores morais e religiosos, o pensamento católico predominante no século XIX, incluído aí o antiliberalismo de Pio IX, muito se valeu em 1851 da obra de Donoso Cortés, intitulada Ensaio sobre o catolicismo, o liberalismo e o socialismo. Donoso Cortés, em carta ao Conde de Montalembert, afirmará em 26 de maio de 1889: “Minha conversão aos bons princípios se deve, em primeiro lugar, à misericórdia divina e, depois, ao estudo profundo das revoluções.”

Recebendo as influências do conservadorismo de Joseph de Maistre, a chave de seu pensamento social se encontra na afirmação de que as questões sociais não são independentes. Ao contrário, estão intimamente unidas às questões religiosas, políticas e econômicas.

Combatendo o liberalismo Donoso proclama: “Esta escola todavia não chegou a compreender, e provavelmente jamais compreenderá, o estreito vínculo que une entre si as coisas divinas e as humanas; o grande parentesco que têm as questões políticas com as sociais e religiosas, e a dependência em que estão todos os problemas relativos ao governo das nações daqueles outros que se referem à Deus, legislador supremo de todas as associações humanas.”

Para Cortés, o extravio da inteligência humana era representado pela descrença, pela falta de fé, pelo primado da razão às coisas sobrenaturais. A laicização da sociedade que era objeto de suas observações nos seguintes termos: “O grande pecado desses tempos me parecer consistir no intento vão, por parte das sociedades atuais, de formar para seu uso próprio um novo código de verdades políticas e de princípios sociais; em seu intento vão de conduzir suas coisas por meio de concepções puramente humanas, fazendo uma absoluta abstração das concepções divinas.”

Considerando a soberania da razão verdadeiro absurdo e elevando o primado do teocentrismo às relações entre Igreja e Estado, tem em conta que este não existe sem a ordem, e esta se configura na superioridade hierárquica de tudo que é sobrenatural sobre o que é natureza. Daí, por conseguinte, a fé se sobrepõe à razão, a graça ao livre arbítrio, Deus sobre a liberdade humana e, obviamente, Igreja sobre Estado.

O homem de pensamento consentâneo ao da era moderna, considerado portanto egoísta e gerador de injustiças sociais, era acusado de desejar separar-se dos ditames da Igreja. O liberalismo, o protestantismo e o socialismo, entendidos como fontes de impurezas, eram pensamentos incompatíveis à doutrina cristã, e consequentemente à salvação da alma.

O processo revolucionário nos diversos campos da atividade humana era comparado por Cortés a um retorno do paganismo: “Este período de rápido retrocesso começou na Europa com a restauração do paganismo literário, a qual produziu, uma após outras, as restaurações do paganismo filosófico, do paganismo religioso e do paganismo político. Hoje o mundo está às vésperas da última destas restaurações: a restauração do paganismo socialista.”

A Igreja do século XIX, ao idealizar um tipo ideal de sociedade e de indivíduo, tinha em seu conceito a necessidade da religião como elemento fundamental a permear as relações sociais e institucionais, inclusive aquelas entre Estado e Igreja. Tudo estaria girando em torno da religião. O sucesso na família, no trabalho, nas relações harmônicas da sociedade, nos negócios, no casamento, estaria sempre “condicionado à intensidade de sua vida religiosa, ao cumprimento de seus deveres sacramentais.”

Concepção quase teocrática, onde a necessidade de interseção contínua da Igreja em todos os setores da vida social e econômica se fazia necessária para o bom andamento de tudo, ficava claro que o livre trânsito de pensamento do homem era, além de um pecado, uma quimera.

A Igreja lançava ao mundo um código de conduta praticamente incompatível aos progressos materiais e políticos obtidos à custa de muito sangue pelas sociedades. A ciência econômica, por exemplo, deveria estar subordinada ao talante dos dogmas, e este seria o verdadeiro progresso: “Nenhum homem que tenha alcançado a imortalidade baseou sua glória na verdade econômica: todos têm fundado as nações sobre a base da verdade social, sobre a base da verdade religiosa. Isto não significa afirmar que os governos tenham que descuidar da questão econômica, que os povos tenham que ser mal administrados, mas sim que cada questão deve estar em seu devido lugar, e o lugar dessas questões é o terceiro ou o quarto, não o primeiro.” Nessa configuração, onde um papismo exaltado pelo ultramontanismo obtinha uma unidade que Trento não conseguira, Pio IX proclama solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria em 1854, tudo levando a crer, segundo a observação irônica de Eamon Duffy, que “o Céu evidentemente o aprovou, pois, quatro anos depois, em Lourdes, a senhora imaginária identificou-se a Bernadette Soubirous, declarando: ‘Eu sou a Imaculada Conceição.’ ”

Procurava-se pois orientar as devoções populares à autoridade papal, e neste desiderato Pio IX estende ao mundo em 1856 o culto ao Sagrado Coração de Jesus, demonstrando que o ultramontanismo europeu soube entender e canalizar com muito engenho as necessidades de piedade antropocêntrica dos católicos. No Brasil, a partir de 1894, os padres redentoristas bávaros serão os representantes dessa corrente em Aparecida – o que não impediu um caráter muito próprio – conduzindo com perspicácia e especificidade a reforma ultramontana.

Cumprindo a missão que lhes foi confiada, qual seja, a implantação de um catolicismo mais romanizado, mantiveram-se estritamente no escopo da reforma, enquanto que outros, como sói acontecer, exageraram, transformando o ultramontanismo em quase nova Inquisição.

Convencido estava Pio IX e a maioria da Igreja de que o Risorgimento representava o espírito de 1789. O papa, dotado “de uma formação intelectual superficial, como a maioria dos eclesiásticos de sua geração,” confundia democracia com revolução, atribuindo a esta o fim de todos os valores cristãos. A Igreja destarte desloca seu furor contra a secularização dos costumes, tendo seus inimigos representados pela Maçonaria, e por qualquer aspecto de liberalismo.

Incapaz de adaptar-se com presteza aos acontecimentos do século, prefere reagir utilizando-se de velhas ferramentas, colocando sob o alqueire a luz de sua diplomacia política e de sua sensibilidade. A questão ganhou contornos graves quando a parte norte dos Estados da Igreja foram anexos ao Reino do Piemonte em 1860.

O papa tentou defender-se. Após haver lançado a excomunhão contra os usurpadores, dirigiu-se aos seus partidários, organizando um exército de voluntários procedentes de todos os países católicos, vencidos pelas tropas sardas de efetivo oito vezes maior.

A 19 de março de 1861, Vítor Emanuel era eleito rei da Itália. Ainda assim faltava-lhe Roma, que no entanto significava mais que uma simples cidade italiana. Tratava-se da capital do catolicismo, e os católicos estimavam que a soberania temporal era uma condição necessária para o exercício da soberania espiritual. Caso Roma se tornasse apenas uma cidade, o papa seria apenas mais um bispo dentre outros.

Essa avalanche de novas configurações políticas – imbricadas com um progresso que avançava de forma exponencial – provocou uma radical reação por parte da Igreja. Em 8 de dezembro de 1864, a encíclica Quanta Cura, acompanhada do Sílabo, uma proposição de 80 erros considerados lesivos aos dogmas católicos, definia claramente o pensamento reacionário do papa e do Vaticano.

No parágrafo inicial de Quanta Cura Pio IX mostra estar seguindo a trilha de seus antecessores, que ao combaterem as heresias, “contrapuseram contínua resistência às iníquas tramas dos homens que, espumejando suas confusões como as ondas encalpeladas do mar e prometendo liberdade, quando na verdade eram escravos do mal, trataram de destruir, como suas opiniões capciosas e escritos perniciosos, os fundamentos da religião católica e da sociedade civil.”

Como se pode verificar, Pio IX dá status de heresia às questões que são tratadas como reprováveis no documento.

Inicialmente são objetos de condenação o “ímpio e absurdo naturalismo” , a ideia de que a sociedade e o progresso civil se governe sem se preocupar com a religião, a liberdade de consciência e de cultos e a liberdade de manifestação das ideias.

Para Pio IX, o afastamento da religião na sociedade civil significava o afastamento da justiça e do direito, onde então a força material teria lugar de destaque nas relações sociais. A opinião pública, traduzida pela vontade do povo, não poderia sobrepujar o direito divino, representado pela Igreja Católica.

O documento também observa que a sociedade deveria conduzir-se tão somente pelos laços da religião, posto que sem eles nada mais visaria senão acumular riquezas materiais, “e que outra lei não seguirá senão a infrene concupiscência do coração, posta ao serviço de suas próprias comodidades e caprichos?” A encíclica também condena as concepções baseadas no comunismo e no socialismo de que a sociedade só tem razão de existir quando baseada no direito civil, assim como o direito dos pais sobre a educação dos filhos. Clara observação, em nossa leitura, ao ensino leigo.

Passados mais de trezentos anos sem a existência de qualquer outro Concílio, foi convocado por Pio IX pela bula Aeterni Patris em 29 de junho de 1868 o Vaticano I, onde pela primeira vez bispos brasileiros participariam de um Concílio Ecumênico.

Oportunidade ímpar para a discussão dos problemas do catolicismo na Igreja brasileira e mesmo para apresentar as vicissitudes por que passavam, o Vaticano I atuou como força impulsionadora da vontade dos bispos em seus desejos reformadores, dos quais o mais destacado foi para nós D. Antônio de Macedo Costa.

Após inúmeras discussões de caráter político e teológico, irá a centralização ultramontana atingir seu ponto alto com o decreto da infalibilidade papal em 18 de julho de 1870. Imprensa, velocidade, condenação do absolutismo, ferrovias, progressos em todos os campos da ciência, a relativização da verdade, democracia, socialismo. O mundo em dúvida pelos caminhos a tomar e...um papa infalível! Esta ruptura da Igreja com uma realidade considerada desagradável foi captada com muito espírito por João Camilo de Oliveira Torres como “quase a suprema bofetada na face do século.”

As tropas francesas que defendiam Roma foram retiradas devido a guerra franco-prussiana. Aproveitando-se da fragilidade, Vítor Emanuel sitiou a cidade e, a 20 de setembro de 1870, após cinco horas de bombardeio, dava-se por encerrado um milênio e meio de governo papal. O domínio secular do papa, o Estado pontifício, era tragado pelo novo Estado nacional na Itália. Isso no entanto era política. Logo a Igreja saberia conduzir o processo de arranjo onde o papa, mesmo privado de territórios, manteria honras e imunidades, conservando o serviço postal, telegráfico e sua guarda pessoal, além de ficar com o uso exclusivo do Vaticano. O Estado renunciava ao direito de nomeação dos bispos, o que só na Itália isso representava 237 nomeações que passavam às mãos do pontífice. Firmava-se a certeza de que era ele quem nomeava o episcopado.

Pio IX morreu a 7 de fevereiro de 1878 deixando para Leão XIII uma Igreja “pronta para o combate”. Com ele todos os aspectos de sua multissecular existência encontravam-se modificados e quase todo o episcopado foi renomeado em seu reinado. As ordens religiosas renovaram-se e expandiram-se de forma inimaginável pela geração anterior, tanto pela expansão das existentes quanto pela criação de novas, representando com isso um florescimento assombroso da energia cristã. Era uma só fé, uma só lei canônica, uma só disciplina, enfim, “uma só pirâmide de autoridade encabeçada por um Papado empreendedor e intervencionista.” O velho tronco do catolicismo brasileiro receberia então nova seiva.

Roma Locuta, Causa finita: a Reforma Ultramontana no Brasil

Seja em virtude das próprias características de sua colonização, seja em virtude dos empecilhos provocados pelo Padroado, as determinações do Concílio Ecumênico de Trento não foram impostas com vigor no Brasil. Somente três séculos após eclode aqui a reforma ultramontana ou, como também é conhecido, o Movimento Brasileiro de Reforma Católica do século XIX. Terá como alvo a conquista de alguns objetivos, tais como a “expulsão dos leigos” do comando das irmandades e confrarias, visando com isso torná-las mais submissas à Igreja; “purificação” das práticas religiosas dos fiéis tidas como supersticiosas; maior enquadramento à disciplina por parte do clero e das ordens religiosas; maior, senão total, sujeição à Roma e ao papa, mostrando com isso que “éramos ‘católicos romanos’ e não ‘católicos do Conselho de Estado’.” Para isso era desejada uma maior independência da Igreja em relação ao governo, mas não a ponto de uma separação, há que notar-se bem. Era necessário pois corrigir um catolicismo eivado de concepções iluministas, cujo primado da ciência subjugava a teologia e a filosofia. Era preciso, enfim, reformar “o humanismo cético ensinado em Coimbra sob o patrocínio de Pombal, o liberalismo dos filósofos que se infiltra mesmo nos conventos e nas fileiras eclesiásticas, o racionalismo e o deísmo cultivado secretamente nos areópagos maçônicos.” O Movimento Brasileiro de Reforma Católica do século XIX também foi, no plano interno, uma resposta eficaz às tentativas de reforma da Igreja por parte de Feijó, tendo D. Romualdo Seixas, arcebispo da Bahia (1827-1860) e D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, como os pioneiros na implantação do ultramontanismo no Brasil, secundados por D. Antônio Joaquim de Melo em São Paulo e D. José Afonso no Grão-Pará. O objetivo era pois atingir uma reforma contrária da visão propugnada pelo grupo paulista, procurando-se em paralelo à centralização papal de Pio IX uma centralização episcopal na Igreja brasileira. Dava-se a esta uma conformidade menos nacional e mais romanizada, aqui entendido como um fortalecimento de laços com o poder pontifício até então dificultado pelo Padroado. Não obstante essas metas só serem plenamente atingidas com a República, que decretou a liberdade religiosa e a extinção do Padroado, começaram a ser postas em prática, ainda que moderadamente, algumas atitudes reformistas por parte dos bispos com a conivência do poder público.

Ainda que possa parecer paradoxal e até mesmo incongruente, dadas as intrincadas relações dos dois poderes, o que levou entretanto D. Pedro II, segundo Joaquim Nabuco um “católico limitado,” e destinado na visão de Villaça a “conciliar o deísmo de fonte católica e as ideias evolucionistas, da ciência de seu tempo, eis a sua estranha síntese,” a transigir com o poder espiritual em seus objetivos reformadores?

Augustin Wernet lançará luzes neste questionamento para justificar o crescimento do ultramontanismo no Brasil ainda sob o manto do Altar unido ao Trono. Não obstante sua manutenção pelo Império, a tentativa de moralização da sociedade por parte dos bispos reformadores era mais útil ao governo de D. Pedro II que o catolicismo iluminista.

A reflexão de Wernet, portanto, estabelece um elo entre o pensamento religioso conservador da época com as conveniências políticas também conservadoras, elo esse fundamental para o entendimento do avanço ultramontano no Brasil:

“O princípio monárquico e a centralização seriam mais adequados do que as ideias republicanas e federalistas. O catolicismo ultramontano, portanto, não apenas correspondeu à orientação da Igreja Católica, oficialmente apresentada no centro da cristandade, mas também aos interessados na manutenção do status quo no país.”

Conforme visto anteriormente, a crise nas ordens religiosas e as irregularidades do clero permeavam a vida da Igreja, ressentindo-se essa também de bons seminários. Em face dessa situação particular teve início a reforma ultramontana no Brasil, movimento caracterizado por Riolando Azzi como “tridentino, romanista, episcopal e clerical.” Vejamos essas quatro linhas básicas:

O Caráter Tridentino

A implantação do Concílio de Trento não ocorreu no Brasil "comme il faut". Um fraco prenúncio pode ser considerado na figura das já reportadas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Não houve porém ação de continuidade à obra de D. Sebastião Monteiro da Vide posto que seu sucessor, D. Luís Álvares de Figueiredo, interessava-se mais pelos estudos de arqueologia. O jesuíta Gabriel Malagrida por sua vez, ocupado intensamente na instituição de seminários durante o século XVIII, vê-se obrigado a interromper bruscamente seu objetivo em virtude da expulsão dos jesuítas. Em decorrência, o ideal tridentino de fazer valer suas determinações, dentre elas a construção de seminários, só poderá ser iniciado no Brasil pela mão dos bispos reformadores no século XIX.

O Caráter Romanista

Caracterizar o movimento como romanista torna-se de simples apreensão em virtude do exposto anteriormente. Basta lembrar o catolicismo europeu cindido entre regalistas, galicanos e jansenistas, dentre outros, defensores de uma Igreja nacional e dependente do poder civil, como já apresentado em seus principais conceitos, e do outro lado os católicos romanos ou ultramontanos, defensores da obediência direta ao papa.

No Brasil, as vinculações com Roma foram praticamente nulas no decorrer do período colonial. Já no período imperial, “especialmente por influência do novo espírito trazido pelos lazaristas,” parte a Igreja do Brasil para uma real aproximação da Santa Sé, simultaneamente tentando afastar-se das malhas do Padroado imperial. Para Roma serão mandados por D. Antônio Ferreira Viçoso seus melhores alunos, visando complementar a formação sacerdotal e habilitá-los à direção dos seminários. Dentre eles, D. Luís Antônio dos Santos, D. Pedro Maria de Lacerda e D. João Antônio dos Santos, futuros bispos reformadores, além de D. Antônio de Macedo Costa (1860–1891). A propósito do estreitamento de laços com a Santa Sé, é o próprio D. Antônio de Macedo Costa que fará mostrar ao poder civil a importância do papa como chefe do poder espiritual, fazendo ver ao Estado que é da Santa Sé que dimana o poder eclesiástico para os bispos. Escreve em sua Carta Pastoral de 1875: “O Papa é o Pastor universal. Sua magistratura suprema nas coisas do espírito não conhece limites terrestres.” A fidelidade ao papa desta nova plêiade de bispos ultramontanos fará com que as ações pastorais da Igreja no Brasil sejam definidas conjuntamente com Roma. Nada mais consequente, pois essa aproximação era uma das metas desejadas por Pio IX.

O Caráter Episcopal

O caráter episcopal do movimento em nada se reporta ao episcopalismo, termo utilizado para indicar a autoridade do bispo em detrimento ao papa. Muito pelo contrário, no ultramontanismo serão os bispos grandes fautores das orientações papais, e é nesse sentido que repousará a autoridade a eles delegada. Nesse sentido, o caráter episcopal do movimento pode ser bem definido tendo em vista o caráter verticalizado de sua estrutura de comando. Não foi portanto um movimento de caráter popular, mas uma ação eminentemente hierárquica. Serão os bispos que a conduzirão, enfrentando as resistências governamentais e do próprio interior da Igreja. Através de suas cartas pastorais darão comando ao clero e aos fiéis, e ao contrário de seus antecessores, os bispos afastar-se-ão dos embates políticos e recusarão cargos na política imperial, voltando-se quase que exclusivamente para os assuntos internos da Igreja. D. Antônio Joaquim de Melo (1852-1861), por exemplo, é bastante claro no que representa seu múnus no sólio de São Paulo quando da cerimônia de sagração, recomendando a todos, clero e fiéis, a obediência nos seguintes termos: “se nos desprezardes, desprezareis a Cristo, que nos deu a vós, e desagradareis ao Soberano, que nos apresentou.” (os grifos são nossos) O bispo reformador que mais pugnou pelo caráter episcopal da reforma ultramontana no Brasil em âmbito externo foi certamente D. Antônio de Macedo Costa (1860– 1891), bispo do Pará. Se D. Antônio Ferreira Viçoso marcou exemplo como um bispo que trabalhou pelo ultramontanismo quase que exclusivamente na organização interna da Igreja, D. Antônio de Macedo Costa por sua vez militou de forma viva no plano externo, para fazer do episcopado um poder espiritual forte o suficiente para se fazer ouvir em suas reivindicações. Precursor do ideário do Cardeal Sebastião Leme, a dimensão política da visão pastoral de D. Antônio de Macedo Costa fazia deste baiano de Maragogipe um cruzado na luta da Igreja, em poder exercer livremente sua atividade, envolvendo-se na tão conhecida “Questão Religiosa”, ao lado de D. Vital de Oliveira, bispo de Pernambuco nos anos 1872-1875. Esforçou-se por mudar “a tradicional imagem dos prelados, considerados altos funcionários a serviço do governo, pelo conceito de membros da hierarquia eclesiástica, cuja autoridade adivinha diretamente do Sumo Pontífice.” A atuação de D. Antônio de Macedo Costa em valorizar a dignidade episcopal foi um dos baluartes de sua vida. Livrar a Igreja do jugo do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos, pasta ocupada por Feijó e que tantos transtornos havia causado, livrar a Igreja das constantes intromissões do poder civil levava o bispo a enfrentar o governo em 1864 com o seguinte texto: “O episcopado brasileiro é unânime em lamentar comigo essas invasões que se tem feito, que vão se fazendo cada dia nos domínios da Igreja. Não estou só.”

O Caráter Clerical

Finalmente o caráter clerical, ou seja, nada deveria ser feito sem o padre. Em outras palavras, afastar o leigo do processo decisório nas atividades religiosas, diminuindo com isso sua independência tão comum às lides devocionais da religiosidade popular. Pari passu preparar melhor o clero, procurando afastá-lo do “mundo” e do excessivo contato com outras atividades que não as religiosas.

A nova visão da Igreja também terá D. Antônio de Macedo Costa como um de seus mais firmes representantes, defendendo o ponto de vista de que competia exclusivamente ao clero gerir os negócios da instituição sem qualquer interferência leiga. O avanço seria realizado simultaneamente com a “deposição do leigo” da vida administrativa das igrejas, santuários e confrarias e com a obtenção de um clero preocupado exclusivamente com a espiritualidade e o culto.

De meados do século XIX para frente, passam a conviver no Brasil os dois tipos de padres: o tradicional, imiscuído à vida do povo, geralmente amasiado e envolvido em atividades comerciais e querelas políticas, e o sacerdote “reformado”, dotado das características desejadas pelo ultramontanismo.

O primeiro tipo é herdeiro dos tempos coloniais e do Padroado, enquanto que o segundo é produto do modelo romanizado já obtido nos seminários. Esse novo tipo de clero vai progressivamente predominar nos meios urbanos e será alinhado e dependente do episcopado, enquanto que o padre tradicional permanecerá vivo no interior. Os redentoristas bávaros encontrarão em Aparecida e nas regiões próximas à cidade este último modelo de padre, que imporá reações aos novos tempos.

A Acção Reformista

Renovar a Igreja era a grande meta da reforma ultramontana, traduzida essencialmente em implantar no Brasil as normas tridentinas de fins do século XVI, substituindo destarte as diversas manifestações de religiosidade popular por um catolicismo oficial e hierarquicamente verticalizado.

Era necessário pois, antes de atingir o objetivo final, conquistar pontos no terreno que assegurassem a consistência da unidade pretendida. Isto posto, de nada adiantaria, por exemplo, tentar uma dinamização da pastoral tendo por perto ordens religiosas decadentes. Ou bons seminários e a excessiva participação leiga. Era preciso portanto atacar simultaneamente os flancos sensíveis de uma religião exposta por três séculos a todos os tipos de influências, desencontros, fusões e confusões.

Pode-se então destacar os seguintes pontos: A reforma das ordens religiosas tradicionais, o aperfeiçoamento da formação sacerdotal, a reforma do clero e a dinamização da pastoral. Senão vejamos:

a) A Reforma das Ordens Religiosas Tradicionais, a vinda de Novas Congregações e as Novas Associações Religiosas “O mosteiro ou convento dos beneditinos, ao qual já me referi, está situado na parte mais elevada da cidade e não tem de notável senão a bela vista que do mesmo se descortina. Quando ali estive, habitava-o um religioso apenas e, em 1838, continuava a ser residência de um só monge.” “São Paulo é rica em igrejas e conventos, alguns sem nenhum gosto arquitetônico...A mais imponente das construções é, sem dúvida, o convento dos Carmelitas, situado em uma colina que domina a paisagem. Apenas restaurado e caiado, oferecia, quando o vi, em 1858, aspecto antes risonho que venerando...O convento possui bens de fortuna avaliados em 190 contos de réis, e mais 400 escravos, que proporcionam apreciável renda anual. Contaram-me coisas pouco edificantes quanto à moral dos monges.” Dois viajantes, cujas observações são separadas por aproximadamente quarenta anos, falam de velhos assuntos: a riqueza das ordens religiosas, o abandono dos conventos, a moral dos frades. Foram introduzidas no Brasil desde os tempos coloniais os Agostinianos, Beneditinos, Capuchinhos, Carmelitas, Carmelitas descalças, Clarissas, Concepcionistas, Franciscanos, Jesuítas (até 1759), Mercedários e Ursulinas, dentre outras. Luso-brasileiras em sua maioria, com exceção dos capuchinhos italianos, tornaram-se “tradicionais” na paisagem religiosa do país, caracterizando-se em uma vida voltada para a clausura e pouca atividade apostólica. “Daí, as acusações constantes em nossas Assembleias Legislativas de que a vida religiosa era uma vida de ‘ociosidade’.” Enriquecendo-se com o tempo, como percebeu Tschudi em São Paulo, “pela moeda que a piedade dos fiéis tem amontoado nos conventos, e esses frades, na maior parte, tão sabiamente administraram,” terminaram as Ordens “tradicionais” entrando em decadência já no século XVIII não só pelos ataques do Padroado mas também pela própria riqueza, que gerou inobservância às diversas normas, mundanismo e desunião entre seus membros. Era portanto necessário, além de renovar as velhas ordens religiosas, trazer para o Brasil associações católicas comprometidas com o pensamento ultramontano. Assim fizeram os bispos reformadores, contando com a transigência das autoridades brasileiras. Dedicando-se não à vida contemplativa mas ao trabalho apostólico, chegam ao Brasil os padres da missão ou lazaristas, os capuchinhos italianos e franceses, os jesuítas espanhóis, austríacos, italianos, portugueses e alemães, salesianos italianos, franciscanos alemães, dominicanos franceses, redentoristas holandeses e bávaros, distribuindo-se todos em diversas atividades: educação, assistência social a pobres e presos, atendimento hospitalar, missões pastorais etc. Na visão de Wernet esta mudança estrutural, visando essencialmente a europeização do catolicismo brasileiro, “está intimamente ligada à primeira fase de modernização do Brasil em nível econômico, social e tecnológico que, por sua vez, se enquadra no processo da nova expansão colonial da Europa.” Em outras palavras, o modelo dominante teria que atingir também a religiosidade. Sobre o desejo da vinda de religiosos ultramontanos e os problemas do Padroado é bastante esclarecedora a carta escrita por Dom Viçoso, pedindo auxílio a D. Celestino Cocle, bispo redentorista e confessor do Rei de Nápoles. Inicialmente confessa-se devoto de Santo Afonso de Ligório, fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, encontrando entre si e aquele um ponto comum: nascera em 1787, mesmo ano da morte do santo, para em seguida preocupar-se com as questões de seu interesse, lamentando-se que “...quando me lembro que terei que assumir sobre mim uma diocese que não possui cátedra de Teologia Dogmática[...]” Ato contínuo, passa a expor seus temores quanto ao clero de Mariana: “...e onde existem tantos sacerdotes e até mesmo párocos incontinentes e escandalosos, fico apavorado em me achar em tão crítica situação”. Não vendo solução com os meios que dispõe em curto espaço de tempo, questiona: “Mas como posso providenciar durante meu episcopado sujeitos hábeis e aptos para o serviço do bispado?”. Demonstra novamente suas preocupações com o clero e disposição para imitar Santo Afonso, quando afirma que “decidi e resolvi procurar alguns discípulos do mesmo Santo, que me ajudarão na educação do clero e a pregar missões de que essas regiões tanto carecem e que pretendo fazê-las durante as visitas pastorais, como o mencionado Santo fazia”. (o grifo é nosso) Para impressionar D. Celestino, apela para o tamanho de sua diocese: “Exmo Sr., o Bispado de Mariana é mais extenso que toda a Itália e possui paróquias com mais de 40 léguas quadradas, com apenas dois padres”. E para comover o superior redentorista, acena com a tragédia escatológica: “Comova-se de piedade e por tantas almas que se acham em perigo de perderem-se”. Expondo as dificuldades impostas pelo Padroado, escreve que “não lhes poderei fazer conventos estáveis para sempre, porque são proibidos pelas leis do império. Vou me empenhar, entretanto, e usarei de todos os meios para que me dispensem desta proibição, mas não poderei fazê-lo antes que venham os discípulos de Santo Ligório”. Para ajudar a convencer, é incisivo em uma questão sempre melindrosa: “Todas as despesas da viagem serão feitas por mim ”. Imbuída deste espírito, a Igreja ultramontana tentará restaurar sua unidade de comando em todos os aspectos da vida católica brasileira, interferindo também nas “heranças coloniais”, dentre elas as irmandades e as festas, materializações da práxis religiosa do povo brasileiro, adepto de um “anarquismo cristão” que, se indisciplinado pelo ponto de vista ortodoxo, nem por isso autêntico. Purificação e clivagem do sagrado e do profano, eis aí uma das grandes metas da Igreja em meados do século XIX e início do século XX. Pari passou ao processo de europeização das velhas ordens religiosas e a chegada de novas congregações era também necessário refrear a autoridade e autonomia das irmandades e confrarias, eliminando-se dessa forma a “Igreja dos leigos” em favor da “Igreja dos clérigos”. E assim foi feito, seja reformulando os estatutos das confrarias, seja promovendo-se novas associações religiosas “que já desde a sua fundação estivessem enquadradas nas estruturas hierarquizadas da Igreja.” Assiste-se pois ao surgimento de numerosas associações, já sob o efetivo controle dos bispos, como por exemplo o Apostolado do Coração de Jesus, as Conferências de São Vicente de Paulo, a Pia União das Filhas de Maria e a Sociedade Católica Estudantil, Damas de Caridade, Congregação da Doutrina Cristã e Círculos Católicos de São José, entre inúmeras outras. O resultado foi a perda de importância das antigas irmandades e confrarias, chegando-se em 1904 ao auge da centralização, quando D. José de Camargo Barros criou uma Confederação de todas as associações leigas.

b) O Aprimoramento da Formação Sacerdotal O aprimoramento da formação sacerdotal foi o mais importante ponto da ação reformadora dos bispos ultramontanos. A precariedade dos seminários, piorada pela expulsão dos jesuítas, é motivo de observações: “A maioria dos padres, segundo o testemunho de Mons. Bruno, eram ignorantes e incapazes de paroquiar. As causas de tanta decadência não nos são ocultas: não havendo seminários bem disciplinados naqueles tempos idos, a formação sacerdotal era descurada. Havia em certas cidades do Ceará, como em Fortaleza, Crato, Sobral, Aracaty e outras, professores de latim, encarregados de mandar para Olinda aqueles que desejavam se ordenar. Iam para Pernambuco esses moços com um mínimo de preparo, e lá depois de poucos meses eram ordenados padres e voltavam para o Ceará investidos do sacerdócio e do cargo de vigários. Outros iam para o Maranhão e de lá voltavam padres com maior presteza ainda.” É claro que o problema não se afigurava tão somente no Ceará, sendo comum em todo o território nacional. Nomeado em setembro de 1843, D. Antônio Ferreira Viçoso é exemplo claro de um bispo voltado exclusivamente para os assuntos internos da Igreja. Em 1844, por exemplo, já denunciava em sua primeira Pastoral a negligência dos párocos, ameaçando-os com a hora da “tomada de contas”: “Ah! Companheiros do nosso ministério, que responderemos a Deus, quando nos lançar em rosto tanto descuido, tanta prevaricação, tanta dissipação? ” O processo decisório passava portanto por duas linhas de ação: a primeira com o envio de seminaristas brasileiros à Roma. A segunda, de maior complexidade, consistia na construção de novos seminários e na reforma e reabertura dos já existentes, procurando-se com isso a vivificação espiritual dos candidatos ao sacerdócio em ambiente convenientemente preparado para tal fim. Esses seminários, rigorosos em seu dia a dia, visavam também cortar os laços familiares e políticos dos seminaristas, estabelecendo uma exclusiva dependência destes para com os bispos e a Igreja. O regulamento do Seminário Episcopal de Mariana, berço de diversos bispos reformadores, apresenta em seus artigos a visão educacional e o rigor ultramontano de D. Antônio Ferreira Viçoso . Várias eram proibições, como por exemplo o trote nos novatos, a introdução de ‘bebidas espirituosas’ e as ameaças e brigas corporais. Os atentados à castidade estavam totalmente fora de qualquer cogitação, e o artigo 13 é claro: “se algum ofender a castidade ainda mesmo com palavras, será expulso do Seminário, ou gravemente castigado, se houver esperança de remédio.” D. Antônio Ferreira Viçoso nesse particular estimula a delação imediata no artigo 14, argumentando que a omissão seria tão criminosa como o ato em si: “Se alguém sabendo dos sobreditos crimes não o participar a quem governa, deverá reputar-se quase como incurso neles, e como quem quer a desordem e destruição do corpo, de que é membro.” Mas os artigos não ficam “soltos” no regulamento. Ao prosseguir na leitura encontra-se ao final a “Ordem nos dias de aula” onde o prelado ordena que as luzes devem ser apagadas às 22:00 horas. Assim feito, arremata: “N.B. como o Bispo estará ausente é o Reitor autorizado para admitir e lançar fora os que delinquirem contra o artigo 13, e 14, comunicando primeiro com o Delegado do Bispo.” Lamentavelmente D. Antônio Ferreira Viçoso não legou à posteridade o que entendia como “esperança de remédio” para tão grave questão... Destinado à formação de um clero ilustrado, disciplinado e moralizado, Dom Antônio Joaquim de Melo (1852-1861) funda “seu” Seminário Episcopal de São Paulo em 9 de novembro de 1856, “o primeiro na Província de acordo com as normas do Concílio Tridentino,” confiando a direção e instrução aos padres capuchinhos italianos.

A preocupação de D. Antônio Joaquim de Melo com o aprimoramento da formação sacerdotal já se fazia ouvir em seu comunicado à diocese no dia de sua sagração. Um dos males que são apontados por D. Antônio Joaquim de Melo no documento refere-se à situação dos padres “ocupados só com o que é do mundo, entregues a toda leitura, embora danosa, embora proibida, ninguém estuda, ninguém medita em Jesus Cristo crucificado: assim se vive contente, como aqueles antediluvianos, sobre quem caiu a terrível inundação da ira de Deus.”

Talvez antevendo as nuvens carregadas que seu bispado ultramontano formaria em virtude dos constantes atritos com seus subordinados, D. Antônio Joaquim de Melo firma sua crença e esperança nos futuros padres: “Meus irmãos, para a cura do primeiro mal não vemos outro remédio senão a criação de um bom Seminário Diocesano.”

c) A Reforma do Clero

O levantamento dos problemas relativos à vida do clero já foram abordados sob diversos aspectos e momentos. A reforma ultramontana encontra esse estado de coisas no clero nacional, procurando soluções que eliminem ou minimizem os problemas já apresentados. Padres desenvolvendo negócios, envolvidos na política, amasiados e com filhos. Os quadros religiosos, sem dúvida, não primavam por um bom comportamento. De fato, como declarou Pio IX, Sicut populus, sic Sacerdos,” e o padre Silvério Gomes Pimenta nos reporta em que estado D. Antônio Ferreira Viçoso encontrou a diocese:

“A maior lástima era a incontinência, porque muito grande parte vivia como se fossem casados, e pela muita frequência e continuação destes exemplos, já o povo quase não fazia reparos em tais procedimentos, e menos estranhava um viver tão encontrado com a profissão, com os votos, e com a dignidade sacerdotal. Por maior desgraça o mal partia do alto: pois onde os demais Sacerdotes deviam de achar modelos em que se espelhassem, achavam tristes exemplos de manifesta desordem. Porquanto o Cabido da Catedral, primeira autoridade na vacância das Dioceses, era com poucas, mas honrosas exceções, composto de padres publicamente amasiados.”

Reformar o clero passava pela implantação de bons seminários, já que seria difícil corrigir os abusos pessoais de cada um. O ultramontanismo, portanto, procuraria na formação de novos padres e futura nomeação para os diversos cargos neutralizar aquele “clero amasiado” que sem dúvida fez grande resistência ao processo.

Procuravam pois os bispos reformadores o aspecto qualitativo em detrimento do quantitativo, iniciando daí uma acentuada queda de “vocações” em virtude de critérios mais rígidos exigidos para a ordenação. D. Antônio Ferreira Viçoso, no entanto, ao mesmo tempo em que envidava esforços no sentido de renovar os velhos quadros por meio do seminário também não descuidava em disciplinar seu clero, pois segundo seu biógrafo “dois são os males que tornam o Sacerdote inútil e grandemente danoso aos mais fiéis: a ignorância no entendimento e o desgoverno do coração.” Assim sendo, impôs a todos o estudo sistemático de matérias teológicas utilizando-se de um ardiloso processo: encaminhava “casos de consciência” a serem estudados, “logrando com essa indústria obrigá-los a revolver livros, e enquanto buscavam resolver uma questão, recordar muitas outras e aprender bom número de que não cogitavam.” D. Antônio Ferreira Viçoso era afeito aos livros e acreditava na leitura como fonte de instrução e disciplina. Soube aproveitar as artes tipográficas a fim de imprimir inúmeros folhetos e livros religiosos. Também procurou difundir entre seu clero a obra de Santo Afonso intitulada Guia do confessor para a direção espiritual dos homens do campo, esforçando-se com isso a fazer com que os padres não esquecessem os princípios de teologia moral. Também não permitia seu clero viver às soltas, procurando diligenciar ao máximo a vida dos padres sob seu comando, visando com isso sua instrução e moralidade. Daí que as correções não respeitavam nenhuma qualidade de pessoa, “caindo-lhes logo por cima com as necessárias advertências e avisos.” Padres que frequentavam bailes, espetáculos, envolvidos em política, amasiados, portadores de adereços exagerados, bebedores em excesso ou rápidos demais em rezar missa, lá estava D. Antônio Ferreira Viçoso a reprimir e ameaçar com suspensões. Enfim, “fosse qual fosse o gênero de pecado, não lhe poupava medicina.” A decência das roupas também era objeto de preocupação do bispo, ordenando que os eclesiásticos “trouxessem sempre vestes talares, e trajassem tanto sem desalinho, como sem afetação, nem ressaibos de profanidade.” Cumpria-se pois modificar a imagem do padre casado e de pouca formação teológica por um novo modelo de referência. Um padre verdadeiramente cioso de seu estado, onde o uso constante da veste clerical materializava sua profissão religiosa e suas preocupações seriam dirigidas tão somente à causa da Igreja. Em São Paulo – terceiro centro irradiador da reforma – o ultramontanismo foi muito bem representado por Dom Antônio Joaquim de Melo (1852-1861), e da leitura comparada entre a biografia deste e do bispo de Mariana, pode-se notar sem dúvida que D. Antônio Ferreira Viçoso foi um moderado... Ainda baseados na vida dos prelados de Minas Gerais e São Paulo podemos notar no trato com a reforma ultramontana um aspecto comum que os une e uma grande dessemelhança no modo de conduzi-la. O caráter comum diz respeito ao esforço aplicado na reforma interna da Igreja. Quanto às diferenças notamos a espiritualidade sacerdotal como marca patente na conduta de D. Viçoso, enquanto D. Joaquim enfatiza uma dimensão onde o caráter jurídico e disciplinar é a tônica. A observação inconteste dos decretos tridentinos marca o rigor da reforma ultramontana, iniciada e conduzida por D. Antônio Joaquim em São Paulo com mão de ferro. Preocupado ativamente com a disciplina do clero e a transgressão das normas da Igreja, faltou-lhe talvez o conteúdo espiritual que deve emanar e dirigir o ideal sacerdotal. D. Viçoso portanto experimenta uma reforma onde a conversão interna se exteriorize como decorrência, ao passo que D. Antônio Joaquim abraça a reforma exterior, de fácil observação e controle, mas talvez mais superficial.

D. Antônio Joaquim de Melo primava pela sinceridade, pelas palavras duras e pelo desejo de uma disciplina quase castrense, muito longe da disciplina intelectual que deveria ser exigida para os quadros de comando de sua diocese. Talvez daí a animosidade que criou contra sua pessoa.

Sua “Carta Pastoral, pela qual V. Ex. Rvdm. há por bem dar um Regulamento ao Clero de sua Diocese” chega às raias de um “josefismo episcopal” cuja análise nos leva a crer que a tendência seria, naturalmente, o seu não cumprimento...

Inicia D. Antônio Joaquim de Melo seu “regulamento” fazendo menção ao que todos sabiam: “Não há muitos meses, que com dor lemos em um periódico do Maranhão, que o Clero do Brasil só tinha uma virtude – não ser hipócrita”... Demonstração clara que os olhos do bispo seriam severos para com seu clero, lembra também que “é tempo de começarmos a reforma por nós mesmos”... D. Antônio Joaquim de Melo ampara-se no modelo tridentino e nas Constituições do Bispado, regulando o vestuário em detalhes, mostra clara de sua mentalidade legalista: “A batina, ou garnacha é o hábito próprio: de garnacha lhes é livre o chapéu triangular, ou como os dos Frades Bentos. Proibimos as vestes talares de seda. As fivelas dos sapatos devem ser brancas, ou de aço. E para a execução destas duas últimas determinações damos o prazo de três meses. As meias devem ser de cor escura, compridas, de maneira a que não deixem ver as calças, coisa tão desairosa...”

Os espetáculos, segundo o bispo: “proibimos debaixo da mesma pena de suspensão, que assistam a bailes, teatros, touros, volantins, cavalhadas, e a quaisquer outros divertimentos profanos, que se oponham ao espírito dos Cânones”...

A influência do clero nas eleições políticas era para o bispo uma grande fonte de desmoralização. A fim de eliminar o problema D. Antônio Joaquim de Melo ordenou aos Vigários estreita observância no cumprimento da ordem de afastar os padres de eleições, já que “desde que o sacerdote é influente, uma maldição se entranha até os seus ossos; sua voz é a de um metal; sua missão fica sem efeito saudável. Mandamos portanto que dado o seu voto para onde os levar sua simpatia, ou consciência, nenhum outro passo deem, deixando aos mortos enterrar seus mortos.”

E por aí vão as ordens do “bispo caipira”, como era chamado por seus desafetos. Jogos de cartas no máximo por duas horas e por pouco dinheiro. A celebração da missa deveria durar no mínimo 18 minutos, sob pena de suspensão. Comércio proibido aos padres. Até a caça era regulada, e o distanciamento temporal hoje torna o escrito divertido, pois caçar perdizes...podia-se!

“A caçada clamorosa, isto é, a que se faz sem cães – excetuamos a de perdizes, – é proibida aos Clérigos pelos Cânones: portanto os Superiores Eclesiásticos acima mencionados avisarão por duas vezes ao Padre caçador: se for indiferente, o suspenderão do uso de ordens.”

d) A Dinamização da Pastoral A reforma dos seminários e do clero teve como referência a diocese de Mariana, procurando-se nos padrões tridentinos o modelo de vida religiosa desejada pela reforma ultramontana. Outra meta a ser alcançada, visando o objetivo principal, era a dinamização de uma pastoral eficaz, que pudesse evangelizar com êxito um povo tão afastado dos padrões religiosos desejados pela Igreja. A educação religiosa representava uma dentre tantas intromissões do governo, e as Constituições Sinodais da Bahia alertam os bispos no tocante ao assunto em 1853: “A doutrina cristã é uma das partes principais que entra na obrigação dos professores de primeiras letras” e “Os senhores bispos nem dão licença para se ensinarem as primeiras letras nem têm inspeção sobre as escolas.” Em suma, enquadrava-se o ensino da religião como mais uma “matéria” cujo ensino cabia aos professores leigos. Sendo parte integrante do programa de reforma a formação religiosa dos jovens, a Igreja procurou contornar o problema através dos estabelecimentos de ensino sob sua direção. Lazaristas, Jesuítas e principalmente Salesianos dedicaram-se ao ensino de bases católicas em estabelecimentos masculinos, enquanto que nos colégios femininos a direção era confiada às Doroteias e Irmãs de Caridade. É no tocante ao ensino feminino, muito mais que no masculino, o efeito multiplicador da evangelização desejada pela Igreja, posto que às futuras mães de família caberia o papel adjunto de substituir os velhos padrões de evangelização inicial precária limitada ao “ensino de rezas” por um ensinamento mais acabado junto aos filhos. Outro aspecto da dinamização pastoral foi o combate aos “luzeiros do púlpito”. A pregação na era imperial era, antes de tudo, um combate travado pelo clero secular e regular visando o melhor e mais culto orador. Longe de se preocuparem com uma linguagem e assuntos adequados às necessidades do povo, procuravam esses “pregadores reais” demonstrar erudição e domínio do vernáculo, e as explicações sobre Deus e os evangelhos cediam lugar aos intermináveis panegíricos. Os redentoristas bávaros ainda encontrariam esse estado de coisas incutido no povo brasileiro em 1901: “Um pregador, não conseguindo satisfazer a curiosidade do auditório, é desprezado, pois o povo não o considera como emissário de Deus, mas como orador.”

Considerações finais com o Ultramontanismo no Brasil

A reforma ultramontana foi feita por homens e para homens, e como em tudo que é humano é possível ressaltar aspectos positivos e negativos. Como aspecto positivo tem-se a grande amplitude conquistada pelo movimento reformador. Sem desconsiderarmos a atuação dos que a precederam, seja pelo comportamento ou pela lide política, a reforma ultramontana parte com efeito do interior de Minas Gerais e consegue paulatinamente espalhar-se por diversas regiões do Brasil. Fez surgir assim um clero bastante diferenciado do que se conhecia, com bispos imbuídos de um espírito verdadeiramente pastoral, considerando-se as necessidades da Igreja, em completa diferença àquela figura do bispo administrador e politicamente comprometido com o governo colonial e imperial. Os aspectos negativos, todavia, também estão presentes, e da análise histórica podemos apontar três. O primeiro foi sem dúvida o caráter intransigente da reforma ultramontana, fruto da própria política intolerante de Pio IX. O quase espírito de cruzada contra a Maçonaria, o protestantismo, o espiritismo e tudo o que representasse o moderno fazia da Igreja uma instituição retrógrada, assim vista pelas camadas mais informadas da população. Rui Barbosa, em sua interminável introdução d’O Papa e o Concílio, obra de autoria de Johann Joseph Ignaz Döllinger e da qual Rui foi tradutor, sintetiza o pensamento de reação à Igreja ao afirmar que “a verdade portanto a respeito do catolicismo ortodoxo, na idade corrente, é que todas as liberdades, populares, individuais, políticas e civis estão por ele, sem exceção, nem reserva, nem atenuante, absolutamente condenadas.”

A segunda abordagem pode ser vista sob o viés da participação popular. Faltou à reforma ultramontana uma massa crítica que lhe permitisse se multiplicar em maior velocidade e densidade. Em resumo, a falta de participação leiga. O ultramontanismo foi um movimento de forte caráter clerical e seus condutores no Brasil, aferrados a este aspecto, consideraram-no como uma última linha de defesa que jamais poderia ser transposta. Um dos resultados dessa política intransigente foi, em nosso entender, a eclosão da Questão Religiosa. Bon gré ou mal gré, as confrarias e irmandades significaram a presença ativa do leigo e foram o sustentáculo de uma religião que, mesmo com todas as incoerências, vícios e limitações, nunca negou sob o viés católico que “Jesus Cristo é o Senhor”. Tentava-se pois substituir uma religião dos sentidos por uma religião do espírito, certamente mais distanciada da índole brasileira. Isso gera por decorrência o terceiro aspecto negativo: a falta de enraizamento cultural.

A reforma ultramontana é transportada para o Brasil desconsiderando-se as especificidades culturais do povo que a receberia. Em outras palavras, como todo ato colonizador, foi mais uma tentativa de “lavagem cerebral”. Forjado em um crisol político e social tipicamente europeu onde o modelo de padre “segregado do mundo” torna-se paradigma de espiritualidade nos seminários brasileiros, o ultramontanismo vai, em última análise, afastar o pastor de suas ovelhas. A repressão ao celibato e a busca da “santidade” tentarão fazer do padre um modelo de sacerdote “virtual”, distanciado do povo e consequentemente alheio aos seus anseios. Como comandar homens sem estar junto deles? Como orientá-los sem saber o que pensam e principalmente sem conhecer as fontes que alimentam suas ideias, modelos de vida e sonhos? A Igreja é sem dúvida uma instituição sábia, particularmente pelos seus dois mil anos de existência onde acumulou experiência suficiente para sobreviver a todos os tipos de governo. No entanto sua dimensão universal e seu caráter conservador não lhe permitem manobras rápidas. Demoraria muito tempo para que seus dirigentes observassem que a religiosidade popular é parte intrínseca nas relações do ser humano com a divindade máxima na América Latina.

Referências

Ver também

Ligações externas

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