Médico de Pés Descalços (Chinês: 赤脚医生; pinyin: chìjiǎo yīshēng) é um profissional de saúde que não cursou clássica formação em medicina. Em sua maioria cursaram o ensino médio e foram selecionados pelo programa que na época (1968) propôs o nome de "médicos descalços" como política nacional, recebendo treinamento no condado ou hospital comunitário por 3 a 6 meses.[1][2]
Desde a Declaração de Alma-Ata de 1978, os agentes comunitários de saúde foram reconhecidos como um componente essencial dos cuidados primários de saúde.[3] No Brasil o tais profissionais corresponderiam a um profissional de nível médio, ou seja com o ciclo básico completo mais três anos de curso. Algo equivalente à Inspetores Sanitários ou de Saneamento, os atuais Agentes de Controle de Zoonoses ou Agentes de Vigilância em saúde e os conhecidos Agentes Comunitários de Saúde. A importância de compreendermos sua formação vêm da necessidade de desenvolvimento de serviços de saúde com ênfase na medicina preventiva e promoção de saúde o que no Brasil vêm se denominando Programa de Saúde da Família.[4]
Na China, os médicos de Pés Descalços são também conhecidos como médicos camponeses, instituídos pelo governo pós revolucionário chinês que organizou a China a partir de 1º de outubro de 1949. Nesta data, o bibliotecário auxiliar da Universidade de Pequim (1918), que participou da fundação do Partido comunista Chinês (1921), Mao Tsé Tung, proclama, por decisão do Conselho Popular, a Republica Popular da China, após o sofrido processo revolucionário que ficou conhecido como “a grande marcha”. O progressivo reconhecimento internacional dessa nova nação consolidou-se com a revolução cultural (1966) que caracterizou a revolução comunista chinesa. A China comunista só veio ser reconhecida pelos Estados Unidos da América do Norte e admitida na ONU em 1972.[5][6]
Necessidade de Saúde na China
O quadro sanitário da população chinesa era lastimável, ignorando-se as baixas da guerra e tribunais revolucionários, que já foram estimadas entre 750.000 e 16 milhões pelo governo chinês e americano respectivamente, as condições de vida eram péssimas, o comércio, exportação de mulheres escravas para prostituição era uma prática comum; a sífilis atingia índices entre 35 e 50% da população em algumas regiões; estimavam-se cifras em torno de 20 milhões de habitantes expostos ao risco imediato de inanição. A esquistossomose e outras doenças transmitidas pela água, assumiam proporções de grandes endemias, como nos países subdesenvolvidos da África, Terceiro Mundo e estavam associadas à falta de saneamento e utilização de excrementos humanos, sem prévio tratamento, como adubo nas plantações.
Analisando-se a mortalidade infantil nesse país continental, observa-se que esta caiu de 160, 200 óbitos por cada 1000 nascidos vivos, em 1935, para 34 por mil, na década de 80; e o coeficiente bruto mortalidade de 30 a 40 por 1000 habitantes, para 7/1000 habitantes, no mesmo período, ou ainda, a ampliação da média de vida de 28 anos, em 1935, para uma expectativa de vida entre 68 e 70 anos, em 1990.[7]
Entre as diretrizes para instituição desse profissional elaboradas na I Conferência Nacional de Saúde estavam: a) Atenção prioritária de serviço de saúde na zona rural, onde residiam 80% da população sem por isso desatender a população urbana; b) Integração da Medicina tradicional chinesa com a Medicina Ocidental.
Não havia um sistema obrigatório de registro médico, estima-se que nessa segunda metade do início do século XX havia cerca de 400.000 médicos tradicionais incluindo desde os eruditos, formados nas escolas imperiais, com caligrafia irretocável e capazes de recitar os textos clássicos de medicina, até os práticos itinerantes, que mal sabiam ler e aprenderam com médicos das diversas pequenas escolas/clínicas como auxiliares ou em relações “formais” de mestres discípulos.
Nessa época o número de médicos ocidentais correspondia à 1 para 1.000.000 habitantes, as centenas de médicos tradicionais limitavam-se às famílias de mais posses, a grande maioria da população rural estava desassistida. Com a revolução cultural em cerca de 30 anos já se registrava nas estatísticas nacionais, 1.463.406 médicos camponeses, escolhidos por local de residência com a participação da comunidade. Cada médico camponês destinava-se ao acompanhamento entre 176 (na brigada de Cai Liang) e 334 pessoas (no distrito de Yexian). No Brasil uma Agente Comunitário é responsável por 50 - 100 famílias na área rural e 150 - 250 famílias na área urbana, com aproximadamente 1000 famílias por Unidade ou Posto de Saúde da Família.
Formação do Médico de Pés Descalços
A formação do médico camponês, no início da concepção dessa prática de saúde, durava 3 anos de teoria e prática em períodos intercalados. Os aprendizes residiam inicialmente por 5 meses próximos à clínica -escola e, nos períodos de colheita, voltavam para sua região de origem. Havia uma preferência na seleção dos candidatos que possuíssem níveis mais elevados de instrução formal, além do conhecimento e participação na política socialista.[8][9]
O período inicial incluía anatomia e fisiologia, dissecação de animais (geralmente porcos) e utilizavam mapas e modelos em aulas teóricas, elementos de patologia, bacteriologia (utilização de microscópio para identificar ovos de parasitas e microorganismos da água) e higiene. Essa última além do aprendizado da esterilização de agulhas e seringas incluía noção dos processos de saneamento, tratamento de esgotos, compostagem agrícola (com utilização de biodigestores) e tratamento para obtenção de água potável. Além do aprendizado de utilização do estetoscópio, diagnóstico de doenças transmissíveis, vacinação e sinais da gravidade de enfermidades, que aprendiam acompanhando rondas de rotina.
Também deveriam ser capazes de memorizar dosagem e utilização de cerca de 40 substancias medicinais e um mínimo de 50 pontos de acupuntura associados ao complexo de sintomas que esses pontos controlavam. Concentravam-se, inclusive para prática da acupuntura, nas doenças comuns da vizinhança. Entre suas atribuições estava a recepção e realização de exames preliminares antes de chamar o médico.
No segundo momento de aprendizagem em tempo integral, médico de pés descalços que havia estudado as doenças mais comuns, estuda então o espectro de patologias de cada órgão bem como sua anatomia e fisiologia. Além da aprendizagem das patologias por sistemas orgânicos o futuro o médico camponês estuda as divisões da prática médica em especialidades e visitam os hospitais escolas das regiões mais próximas.
Ao término de sua formação incluíam ainda conhecimento sobre Planejamento Familiar, Campanhas Patrióticas, conhecimento das equipes médicas itinerantes e da hierarquização do Sistema de Saúde. Havia uma formação diferenciada para auxiliares de saneamento e parteiras, que podiam ser jovens interessadas ou mães experientes, com cursos sucessivos sobre princípios da obstetrícia e pré natal acompanhando médicos em exames pré concepcionais e partos.
O manual médico da província de Hunan incluía mapas de aurículo-acupuntura e acupuntura sistêmica, massagem terapêutica, relação de plantas medicinais conforme efeito descritos na teoria do yin/Yang e 5 elementos incluindo algumas pesquisas sobre princípios ativos e farmacologia de algumas plantas selecionadas, incluídas em formato de artigo científico no anexo do manual como um modelo de estudo.[10]
O manual médico da província de Xangai ("Barefoot Doctor Handbook. Shanghai shichubangemingzu") incluía os seguintes capítulos: 1. Como prevenir doenças?; 2. Como verificar e tratar doenças? ; 3. Como curar doenças com medicina chinesa?; 4. Acupuntura e massagem; 5. Novo tratamento; 6. Ervas chinesas para uso comum; 7. Alívio no campo de guerra e Preparação para armas nucleares, armas químicas e armas biológicas; 8. Diagnóstico e tratamento de sintomas frequentes; 9. Primeiros socorros; 10. Epidemia; 11. Doenças parasitárias; 12. Medicina (doenças) interna; 13. Doenças frequentes de crianças; 14. Doenças da mulher e gravidez; 15. Planejamento familiar; 16. Doença com indicação cirúrgica; 17. Lesões e traumatismos; 18. Doenças oftalmológicas; 19. Doença do ouvido, nariz, garganta e odontológicas; 20. Doença dermatológica; e um apêndice.[11]
Após a publicação de um texto do presidente Mao, em 1958, sobre a necessidade de integração entre a medicina chinesa e a ocidental (zhong xi yijiehe) foi realizada uma progressiva seleção e formação dos chamados “médicos de pés descalços”, (1966 - 1971) para atender a população rural. Os agentes selecionando recebiam um treinamento com elementos básicos de medicina ocidental e chinesa (MTC), houve contudo constantes aperfeiçoamentos e exigência para novas seleções (até 1995) tanto na formação da MTC como pela introdução de “padrões científicos” ocidentais. Posteriormente tais profissionais foram reciclados para transformarem-se em médicos rurais havendo inclusive um declínio na cobertura assistencial e qualidade técnica do atendimento.[12][13][14]
Ver também
- Acupuntura
- Fitoterapia chinesa
- Acupuntura no Brasil
- Medicina tradicional chinesa
- História da acupuntura
- «Ministry of Health of the People's Republic of China»
- «Ministério da Saúde (Brasil) / Programa de Saúde da Família»
- «Programa de Formação de Agentes Locais de Vigilância em Saúde» Acesso Fev. 2015
- «Cartazes de divulgação da atividade dos Médicos de pés descalços (Barefoot doctors)»
Referências
- ↑ World Health Organization China’s village doctors take great strides. WHO Bulletin, V 86, Nº 12, Dec. 2008, 909-988 https://www.who.int/bulletin/volumes/86/12/08-021208/en/ Aces. 08/03/2020
- ↑ Gong, Y. L., & Chao, L. M. (1982). The role of barefoot doctors. American Journal of Public Health, 72(9_Suppl), 59–61. doi:10.2105/ajph.72.9_suppl.59
- ↑ Organização Mundial da Saúde OMS. Diretrizes sobre política de saúde e apoio sistémico para a otimização de programas de agentes comunitários de saúde. (WHO guideline on health policy and system support to optimize community health worker programmes). Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2019. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. ISBN 978-92-4-855036-2 PDF Aces. 07/03/2020
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Bibliografia
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