As línguas afro-asiáticas, ou camito-semíticas, por vezes também chamadas afrasiáticas, lisrâmicas ou eritreias, são uma família de línguas de cerca de 400 línguas.[1] Há 495 milhões de falantes das diversas línguas afro-asiáticas, espalhados pelo extremo norte e leste da África, pela região do Sahel e em todo o sudoeste da Ásia. Dentre as línguas afro-asiáticas mais conhecidas estão o árabe, o hebraico e o hauçá.
Várias das línguas da antiguidade africana e do Oriente Médio pertencem à família afro-asiática, tais como a língua egípcia e o acádio, faladas no Antigo Egito e Babilônia, respectivamente. Os sistemas de escrita desenvolvidos para estas línguas estão entre os mais antigos da humanidade. O próprio alfabeto latino tem sua origem remota no abjad utilizado para escrever o fenício, língua afro-asiática do ramo semítico. O fato de as línguas afro-asiáticas serem escritas continuamente há tanto tempo confere-lhes um lugar especial nos estudos de linguística histórica, já que os registros escritos da família cobrem um período de mais de quatro mil anos.
Classificação interna
A família afro-asiática se subdivide nos seguintes ramos:
- Ramo berbere
- Ramo chádico
- hauçá, daba, munjuque, etc.
- Ramo cuxítico
- Ramo egípcio (extinto)
- egípcio antigo e copta
- Ramo semítico
- árabe, hebraico, fenício, amárico, etc.
- Ramo omótico
- xeco, bambássi, ganza, etc.
O Glottolog não considera o ramo omótico como pertencente à família afro-asiática.[2] Contudo, o beja é considerado afro-asiático pelo coletivo de linguistas, sendo geralmente classificada como parte do grupo cuxítico. A língua ongota é também considerada afro-asiática, mas sua classificação dentro da família ainda é indefinida em parte devido à falta de dados.
Terra natal (urheimat) dos falantes do proto-afro-asiático
Há controvérsia sobre onde se falava a língua que deu origem aos idiomas afro-asiáticos (chamada proto-afro-asiático pelos especialistas). Pesquisadores como Igor Diakonoff e Lionel Bender sugerem a África, sobretudo a Etiópia, devido à grande diversidade de suas línguas afro-asiáticas. Também se sugeriu a costa ocidental do Mar Vermelho ou a região do Saara, propostas defendidas por Christopher Ehret. Por outro lado, Alexander Militarev sugere o Levante.
As línguas semitícas formam o único ramo do afro-asiático presente majoritariamente fora da África. Entretanto, há indícios que ao menos alguns falantes de línguas semíticas tenham feito o caminho inverso, do sul da Península Arábica para a Etiópia, fato que explica que algumas línguas atualmente faladas no país, como o amárico e o tigré, sejam semíticas, não cuxíticas ou omóticas. Em contrapartida, alguns especialistas como Murtonen (1967) sugerem que o semítico tenha se originado na Etiópia e de lá migrado para a Arábia.
Distribuição e status nos dias atuais
Línguas oficiais
Apenas uma minoria das línguas afro-asiáticas possui caráter de idioma oficial nos países onde são faladas. Do ramo berbere, apenas o tamazigue tem status oficial, desde 2011, no Marrocos, e de 2016, na Argélia.[3] O ramo chádico, que conta com 200 línguas,[1] tem apenas o hauçá como representante com status de língua oficial, na Nigéria. Do ramo cuxítico, o somáli é idioma oficial na Somália e no Djibuti, ao passo que o oromo é uma das três línguas oficiais da Etiópia. Nenhuma língua do ramo egípcio é falada nos dias atuais como língua materna, apesar de o copta ser a língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Copta egípcia, o que lhe garante prestígio linguístico.
O ramo semítico possui o maior número de línguas oficiais em diversos países. Além do árabe clássico, idioma oficial da maior parte dos países muçulmanos, o hebraico é oficial em Israel, o amárico e o tigrínio na Etiópia e o maltês em Malta. O maltês é a única língua afro-asiática nativa à Europa.
Caráter semioficial ou língua nacional
O tigré (semítico) é considerado língua de trabalho regional na Etiópia. O afar (cuxítico) é língua nacional no Djibuti, ao passo que o tamazigue e o tuaregue (ambas berberes) são línguas nacionais no Mali e no Níger, no qual o hauçá (chádico) também é língua nacional. Em Camarões, além do hauçá, há 57 línguas chádicas de caráter nacional.[4]
Línguas litúrgicas
As línguas afro-asiáticas têm grande importância cultural dentre as religiões abraâmicas . Além do uso do copta na Igreja Ortodoxa Egípcia, a língua árabe é a língua utilizada em rituais e liturgias de comunidades religiosas muçulmanas. O hebraico é utilizado pelas congregações judaicas ao redor do mundo, e influenciou o cristianismo por meio de conceitos referentes ao judaísmo no Antigo Testamento. A língua etíope (também chamada ge'ez ou gueês) é a língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Etíope. A Igreja Ortodoxa Síria utiliza o siríaco, língua derivada do aramaico, em sua liturgia.
Tipologia e características comuns
Fonologia
O sistema vocálico reconstruído para o proto-afro-asiático é relativamente simples, sendo composto de três vogais curtas /i a u/ e três longas vogais /iː aː uː/. Segundo Ehret (1996), há línguas tonais nos ramos omótico, chádico, e cuxítico meridional e oriental. Os ramos semita, berbere e egíptico não são tonais. A reconstrução do sistema consonantal apresenta mais incertezas. Não há acordo dentre os linguistas especialistas no afro-asiática sobre o número exato de fonemas consonantais ou tampouco sobre inventário. A reconstrução de Ehret (1995) inclui 42 consoantes, ao passo que Orel e Stolbova (1995) propõem 33 consoantes. A tabela a seguir apresenta O inventário combinado de ambas as reconstruções; fonemas entre () são reconstruídos apenas por Ehret, ao passo que consonantes entre <> correspondem à reconstrução de Orel e Stolbova:
A maioria das línguas afro-asiáticas apresenta uma série de consoantes ditas enfáticas, que são geralmente glotais, faringais ou oclusivas.
Morfossintaxe
Alguns traços compartilhados por diferentes idiomas afro-asiáticos incluem:
- Dois gêneros no singular, sendo o feminino indexado com o fonema / t /
- Três casos gramaticais indexados morfologicamente (nominativo, absolutivo/acusativo e genitivo) nos substantivos
- Ordem básica dos constituintes do tipo VSO ("Toma a mulher o caldo"), com tendências em relação à ordem SVO ("A mulher toma o caldo")
- Presença de prefixos e sufixos nos verbos
- Morfologia templática triconsonantal, na qual derivação e flexão se dão por mudanças internas nas palavras
- Plural por flexão interna ou descontínuo, no qual o plural de substantivos e adjetivos se dá por mudanças no interior da palavra, podendo haver rearranjo concomitante das consoantes. Em várias línguas afro-asiáticas, algumas palavras podem também apresentar sufixos concomitantes às mudanças internas, ou apenas o sufixo.
Ramo | Língua | Singular | Plural | Trad. |
---|---|---|---|---|
Egíptico | Copta[5] | bazak | bazíkwu | servo - servos |
mādaw | madíwwu | palavra - palavras | ||
Semítico | Árabe | sabīl | subul | caminho - caminhos |
funduq | fanādiq | hotel - hotéis | ||
Etíope (gueês) | kokäb | kwakəbt | estrela - estrelas | |
hagar | ahgur | região - regiões | ||
Chádico | Hauçá[6] | káskóo | kásàaké | vasilha - vasilhas |
sírdìi | síràadàa | sela - selas | ||
Cuxítico | Somáli | édeg | edgó | teta de vaca - tetas de vaca |
máraq | marqó | curral ovino - currais ovinos |
Conjugação verbal
Nos sistemas verbais dos ramos semítico, berbere e cuxita (incluindo o beja) a indexação de pessoa do discurso é feita por prefixos, sendo que as formas plurais contêm também um sufixo. Em hauçá, os pronomes pessoais são conjugados.
GLOSSA | Árabe (semítico) |
Cabila (berbere) |
Copta
(egíptico) |
Saho (cuxítico) |
Beja
(cuxítico) |
Hauçá
(chádico) |
Som comum | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Verbo | morrer | matar | chegar | sentar | ||||
Singular | eu | ʔa-muutu | m-muteɣ | ti-mou | a-gdifé | a-ktim | náa záunàa | - |
tu (fem.) | ta-muutu-na | tetta-mted | te-mou | ta-gdifé | ta-ktimíi | kín záunàa | *ta- ou *te- | |
tu (masc.) | ta-muutu | te-mmuteḍ | k-mou | ti-ktima | káa záunàa | *t- ou *k- | ||
ela | ta-muutu | te-mmut | f-mou | ya-gdifé | ti-ktim | táa záunàa | *t- | |
ele | ya-muutu | ye-mmut | s-mou | i-ktim | yáa záunàa | *j- | ||
Plural | nós | na-muutu | ne-mmut | tən-mou | na-gdifé | ni-ktim | mún záunàa | *n- |
vós | ta-muutuu-na | te-mmut-em | te-tənmou | ta-gdif-ín | ti-ktim-na | kún záunàa | *t- e/ou *-n | |
eles | ya-muutuu-na | mmut-en | se-mou | ya-gdif-ín | ik-tim-na | sún záunàa | *j- e/ou *-n |
Apesar da diferença marcada entre o hauçá e as demais línguas na conjugação verbal, percebe-seos pronomes divergentes (kín/káa para segunda pessoa) na verdade são consistentes com a série de pronomes pessoais sufixados (ver abaixo).
Pronomes pessoais sufixados
Os sufixos que indicam pessoa (pronomes pessoais e possessivos) apresentam formas similares nos ramos semítico, bérbere, cuxítico (incluindo no beja) e chádico. Quando afixados a substantivos, tais prefixos indicam posse (*dîm-ki 'sangue dela', *dîm-ʔina 'nosso sangue'), ao passo que em verbos tais sufixos indicam o objeto direto. As formas reconstruídas para os diferentes ramos são:
Ramo | Singular | Plural | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1ª | 2ª m. | 2ª f. | 3ª m. | 3ª f. | 1ª | 2ª m. | 2ª f. | 3ªm. | 3ªf. | |
Egíptico | *-ay | *-ku | *-ki | *-su | *-si | *-ina | *-kina | *-sina | ||
Semítico | *-ī, *-yaʔ, *-ni |
*-ka | *-ki | *-šu | *-ši | *-na, *-nu, *-ni |
*-kumu | *-kina | *-šumu | *-šina |
Berbere | -i, -i-n | -k | -(k)m | -s | -nγ | -un | -unt | *-sn | *-snt | |
Cuxítico | *-yi, *-yu, *-ya |
*-ku | *-ki | *(ʔi)-su *(ʔi)-sa |
*(ʔi)-st | *(ʔi)-na *-nu, *-ni |
*-kun(V) | *-kin(V) | *(ʔi)-sunV *(ʔi)-sinV | |
Chádico | wa, ni | -ka | -kim | ši | ta | -na | kun | sun | ||
Omótico | yi-n | iz-n | iž-n | -in | iš-n | |||||
PROTO-AA | *i / *yi | *ku, *ka |
*ki | *si | *isi | *ʔina | *kūna | *su, (*suna) |
Casos gramaticais
O afro-asiático possuía um sistema de casos nominais, no qual o sufixo indexava o papel semântico do substantivo, por exemplo o iniciador da ação (nominativo) ou o paciente da ação ( acusativo). Os dados abaixo do berbere provêm do shilha, ao passo que o ramo chádico é representado pelo hauçá.
Caso | Sufixo | Reflexos específicos em cada ramo | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Semítico | Cuxítico[7] | Berbere[8] | Egíptico | Omótico | ||
Nominativo | *-u | *-u | *-i / *-u | *wā- | -w | *-u |
Absolutivo | *-a | *-a (Acusativo) |
*-a | *ā- | *-a | |
Genitivo | *-i | *-i | *-i | *-i | *-i |
Cognatos e léxico comparado
Dentre as palavras cognatas encontradas em vários ramos citam-se:
- b-n- "construir" (Ehret: *bĭn), atestada nos ramos chádico, semítico (*bny), cuxita (*mĭn/*măn "casa") e omótico (dime bin- "construir, criar");
- m-t "morrer" (Ehret: *maaw), atestada no chádico (p.ej., hauçá mutu), egíptico (mwt, mt, copta mu), berbere(mmet, pr. yemmut), semítico (*mwt), e cuxita (proto-somáli *umaaw/*-am-w(t)- "morrer")
- s-n "saber", atestada nos ramos chádico, berbere, e egíptico
- l-s "língua" (Ehret: *lis' "chupar"), atestada no semítico (*lasaan/lisaan), egíptico(ns, copta las), berbere (iles), chádico (hauçá harshe), e possivelmente no omótico (Dime: lits'- "lamber");
- s-m "nome" (Ehret: *sŭm / *sĭm), atestada no semítico (*sm), berbere (isem), chádico (hauçá suna), cuxita e omótico (as formas berbere isem e omótica sunts se atribuem por vezes a empréstimos do semítico); o egípcio smi "informar, anunciar" talvez seja cognato.
- d-m "sangue" (Ehret: *dîm / *dâm), atestada em berbere (idammen), semítico (*dam), chádico, e possivelmente no omótico. O cuxita *dîm/*dâm, "vermelho", pode ser um cognato.
Numerais
Os numerais reconstruídos para os diferentes ramos são os seguintes[9]:
GLOSA | PROTO- BERBERE |
PROTO- SEMÍTICO[10] |
PROTO- EGÍPTICO[11] |
PROTO- CUXITA ORIENTAL[9] |
PROTO- OMÓTICO[12] |
Chádico | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Hauçá | PROTO- MASA |
PROTO- CHÁDICO | ||||||
1 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *istta / *isko- |
*ɗaw | |||
2 | Predefinição:IPA (mas.) Predefinição:IPA (fem.) |
Predefinição:IPA (mas.) Predefinição:IPA (fem.) |
Predefinição:IPA | *lam- | *lam- | Predefinição:IPA | *mbàʔ *hʷoɓ |
*mbal- *sura |
3 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *sase | *sidda-~ *saddi- |
*kaizo | *ɦindi | *kur̃ | |
4 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *sʷora | *ʔoiddo | Predefinição:IPA | *fiɗi | *fəɗu |
5 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *kən- | *utʦʼa | *vatɬ | *baːɗi | |
6 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *leħ- | *kargi- | *5+1 | ||
7 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *sidiya- | *5+2 | ||||
8 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *siddeta | *taɣwas- | ||||
9 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | |||||
10 | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | Predefinição:IPA | *tanɓa | *taɓi | *gwam- *dok |
Bibliografia
- Bernd Heine and Derek Nurse, African Languages, Cambridge University Press, 2000 - Cap. 4
- Merritt Ruhlen, A Guide to the World's Languages, Stanford University Press, Stanford 1991.
- Lionel Bender et al., Selected Comparative-Historical Afro-Asiatic Studies in Memory of Igor M. Diakonoff, LINCOM 2003.
Referências
- ↑ 1,0 1,1 Hammarström, H., Forkel, R., & Haspelmath, M. (2018). «Glottolog 3.3.». Max Planck Institute for the Science of Human History. Consultado em 25 de agosto de 2018
- ↑ «Glottolog». Glottolog. Consultado em 30 de agosto de 2018
- ↑ «Algeria Press Service (APS)» (PDF). Algeria Press Service (APS). 06//01/2016. Consultado em 30 de agosto de 2018 Verifique data em:
|data=
(ajuda) - ↑ «Les dynamiques démolinguistiques au Cameroun de 1960 à 2005» (PDF). Observatoire démographique et statistique de l'espace francophone. Consultado em 30 de agosto de 2018
- ↑ Vergote, J. (1969). «The Plural of Nouns in Egyptian and in Coptic». Orientalia
- ↑ 1947-, Comrie, Bernard, (1987). The World's major languages. New York: Oxford University Press. ISBN 0195205219. OCLC 13761218
- ↑ Vergleiche: Hans-Jürgen Sasse: Case in Cushitic, Semitic and Berber. In. James Bynon (Hrgs.): Current Progess in Afro-Asiatic Linguistics. John Benjamins, Amsterdam/Philadelphia 1984. ISBN 90-272-3520-1. Seite 111-126
- ↑ Rekonstruktion nach: Karl-G. Prasse: Manuel de grammaire touarègue (tăhăggart). 3 Bände, Kopenhagen 1972-1974. ISBN 87-500-1489-7, ISBN 87-500-1310-6, ISBN 87-505-0205-0
- ↑ 9,0 9,1 Numerals in Cushitic languages
- ↑ John Huehnegard, 2004, p. 154
- ↑ A. Loprieno, 1995.
- ↑ Blazek V. "Lexicostatistical Comparison of Omotic Languages"
Ligações externas
- Ethnologue - Línguas afro-asiáticas
- Russell G. Schuh, Chadic Overview.
Veja também
Predefinição:Nações de língua afro-asiática Predefinição:África/Línguas